- Os rumores chegaram até os meus ouvidos e o Dermeval Passos da Hora sondou-me via conversa telefônica, ainda na noite da sexta-feira última, um pouco tarde para seus hábitos de macróbio cachoeirense, que dorme cedo com as galinhas e acorda ao raiar do dia. Talvez estivesse em dúvida se eu havia mesmo embarcado nesta nau eleitoral dos insensatos que, vez em quando, aporta como catraia calefatada à betume na praia do Cantagalo. O interessante é que este episódio evocou em mim algo meio memorial, sei lá. Quando era garoto na cidade baixa estas embarcações eram às vezes utilizadas como meio de transição para embarcações maiores, como saveiros, lanchas rápidas e outras de maior calado, geralmente conduzida por algum navegador mais simples ou mesmo um pescador modesto, que não se arriscaria a sair em mar aberto. Desse modo os embarcadiços levavam alguns passageiros de barco em barco, navio em navio em pequenos percursos de maré tranqüila.
- O Aurélio eletrônico é que traz informações adicionais de verbete que insuspeitadamente me fazem revelações ou epifanias que somente acontecem nesses momentos nostálgicos. Vejam que catraia é, ao mesmo tempo, um pequeno barco tripulado por um homem só e meretriz de baixa classe! Mas que situação propícia para que o imaginário se solte como um vagabundo saco plástico de bompreço ao vento. A catraia mulher é aquela que se deita no leito tosco, o catre, para o intercurso ligeiro do baixar calçolas, ao tempo em que o barqueiro simplório utiliza-a como se estivesse em fuga de naufrágio, um sobrevivente dos ataques de um cachalote em fúria, como no Moby-Dick de Herman Melville. Outra referência menos literária que chega dá conta da praia do Cantagalo, dos velhos Armazéns Gerais da Calçada e da história de uma senhora idosa e libertina, a arquetípica mulher adúltera, que atraía os marmanjos banhistas e futebolistas para que os latagões a conhecessem em sentido bíblico. Como era muito guri nesta época, os moleques maiores em seus relatos antecipavam para mim conflitos freudianos precoces, pois dizia-se que a mulher trajava roupa escura e sóbria, tinha um ar triste, lúgubre mesmo. Antes aliciava-os com merendas maternais e depois seduzia-os como uma Jocasta do bairro dos Mares. De um tom grego funesto e terrível. Conta-se também que um de seus amantes filais mergulhou imprudente, durante uma maré de março, de cima dos armazéns e acabou paraplégico. Desde então temia aquele local. Nunca mais sequer me aproximei de sua praia, receando o seu pathos trágico. Meses antes uma ressaca violenta de mar Egeu fez ruir muitas casas de sua habitada e urbanizada borda; aquilo me deixou muito impressionado ainda criança. Até o Hospital São Jorge foi abalado severamente. Foi uma comoção geral.
- Esta e outras histórias têm um fecho provisório interessante, pois a molecada de rua certa ocasião tentou a empreitada de construir com tábuas de um velho barco em decomposição mais outros madeirames de incerta procedência, uma venturosa catraia. O arroubo juvenil e a vontade de se lançar ao mar pôs em movimento um grupo denodado de garotos que, sob a supervisão de algum considerando-se mais experiente em construção naval, acabou por construir um amontoado de paus-e-pregos calafetado à betume. Era algo rude mesmo, “mais pesado que a água” e nem sei se remos foram pensados, pois fazer que ela – nossa catraia – flutuasse e partisse era um desejo que nos cegava em obstinação. O final anunciado deste micro episódio dentro da história foi que a nau dos insensatos veio a pique minutos depois de estrondosa alegria de empurrá-la pelas areias da praia de Roma. Poucos tentaram em vão salvá-la. As ondas da maré batida e as marolas provocadas por outros barcos de passagem a fizeram adernar abruptamente. A água invadiu sem pudor seus compartimentos precários e obrigou-nos a nadar em direção à praia, desolados. Somente muitos anos mais tarde é que fui entender um pouco mais de construção naval, num estaleiro comandado por um mestre construtor de barcos artesanais, profissão transmitida através de gerações. Nos tempos antigos, os carpinteiros cortavam as tábuas utilizando machado, serrote e serrotão. Muitas vezes, o tempo necessário de construção de um barco ficava entre 10 e 12 meses.
- Pois é, tudo isso me faz lembrar as tentativas heróicas de fazer eleição departamental, por paradoxal que seja. Se jamais participei de chapas pelo incrível exército de Brancaleone antes, quanto mais agora. Vejam bem, não no sentido de aceitar e me deixar conspurcar por conduta geral que reina num Departamento tão bizarro e sui-generis como o DCIS (nem sei se isso mesmo que ele é!?).
5. Tudo me faz lembrar da Calçada e do homem-placa ou homem-sanduíche. Naquele caminho entre a Jequitaia e o Bonfim sabe-se que, desde 1901, uma ferrovia antes nas mãos dos ingleses passou a ser administrada por uma empresa francesa (Compagnie Chemins de Fer Federeaux du l’ Est Brésilen). Isto permaneceu até 1935, quando ela veio a constituir-se como Viação Leste Brasileiro. Conta-se que, numa dessas idas e vindas do mundo, um homem-sanduíche francês clandestino num navio cargueiro aproximara-se do local e amasiara-se com uma vendedora de mingaus. Esta mimava o gaulês branquelo com muito mugunzá. Tempos depois, os negócios amorosos foram minguando, o homem com saudade de seus queijos podres e a mulher sentindo que os caraminguás rareavam cada vez mais. O desfecho trágico se deu numa catraia, à noite estrelada. Após seduzir o marselhês, a mina fê-lo beber sua última papa de araruta com estricnina. O homem tremelicou, crispou as mãos em espasmos convulsos e só teve tempo de dizer: "Pierre qui roule n'amasse pas mousse (pedra que rola não cria limo, ou vida desregrada dissipa a riqueza)...depois rolou ao mar, tendo como mortalha as próprias vestimentas em forma de anúncio, as quais nem tirava para dormir.
6. Mas é a Susan Buck-Morss que nos traz em sua leitura benjaminiana das Passagens, as conseqüências do aforismo: "O homem-sanduíche é a última encarnação do flâneur". A vagabundagem nos leva ao papel mais ordinário e desqualificado e, mesmo, a pretensa liberdade de se tornar um mercador de ilusões decadentes converte seus prepostos em meros vendedores de enciclopédia. Diz o Miroir du Monde em 1936 : “Você os vê passando por nossas ruas, esquálidos e maltrapilhos, com suas longas capas cinza, sob seus gorros com abas vistosas. Sejamos francos: nem de longe sou favorável a este tipo de trabalho. Por sua própria natureza, nem a dignidade da publicidade e do homem que a porta são valorizadas por meio deste cortejo lastimável”. Nos diz ela ainda que "O homem-anúncio foi uma figura menosprezada, embora familiar em Paris durante década de 1930, uma daquelas personagens que são reconhecidas como parte da maioria dos habitantes da cidade. Homem-cartaz, eles eram outdoors humanos que anunciavam e publicizavam produtos e eventos da cultura de consumo burguês. E, a despeito dos uniformes que lhes eram fornecidos para que tivessem uma aparência mais respeitável, estavam implacavelmente associados à pobreza". Como se vê, nos dias de hoje são compradores de ouro e vendedores de "ouro de tolo", no tráfico da zona de comércio das grandes capitais brasileiras.
7. Nos relata mais ainda Buck-Morss: "Trabalhadores eventuais de meio-período e não sindicalizados, os homens-sanduíche eram recrutados em meio aos mendigos (clochards) – dos quais doze mil estavam registrados em Paris, em meados da mesma década de 1930, como habitantes sem moradia. Dormiam onde podiam, geralmente debaixo das pontes do Sena onde encontravam abrigo das arcadas decadentes. Marginais, proletários desclassificados estas eram a " massa da população esfarrapada, maltrapilha e faminta que a sociedade tinha que desprezar". Nos permitam dizer ainda senhoritas, que algumas dos primeiros "homens-placa" em Paris eram mulheres. “Em 1884, um escritor fez uma reportagem para o London Times: ontem encontrei uma procissão de garotas vestindo cartazes publicitários. E no ano seguinte apareceu no Pall Mall Gazette: Nós temos, e não faz muito tempo, visto mulheres empregadas como ‘sanduíches". Se a relação entre o passado e futuro é um enigma ou charada com o qual despertamos e no qual o conhecimento do passado não é capaz de historicizá-la, mas de cristalizá-la como um pão-de-açúcar em balcão de padaria, os planos da realidade, memória e alucinação transformam o vestido de noiva de Nelson em filó de mosquiteiro na minha cabeça. Desperto agora garoto, com menos de 8 anos em plena Cidade Baixa.
8. Uma vizinha que vem de carona pergunta-me na sinaleira do cruzamento Garibaldi-Vasco da Gama-Lucaia. "Você viu a quantidade de meninas agora distribuindo planfetos imobiliários em Salvador?", "Pois é, deixou de ser coisa de gente pobre, agora tem também universitários fazendo isso...dá um dinheirinho, né?". Abro o vidro e chegam distribuindo vários lançamentos de apartamentos de luxo por toda Região Metropolitana de Salvador, mas também aparece logo um vendedor de rosas e um malabarista projetando seus pinos às alturas, um rapaz humilde que faz um artesanato com fibra de coco verde, um guri com uma garrafa PET querendo lavar o pára-brisa e ... o sinal fica verde novamente. Escapo e sigo adiante. Só paro e estaciono na CEASA do Rio Vermelho. Na barraca de hortifrutis "Bahia" pergunto a seu Ademar pelas novidades. Sempre sorrindo ele me diz que um colega, meio alourado-careca, alto e forte esteve mais cedo e teria perguntado por mim. (Quem teria sido? ), indago-me então. O Carlos Freitas, certamente. Finalmente recordo que devo voltar ao homem-sanduíche na catraia.
9. No retorno para casa, ao descarregar as compras, um saco pleno de limões se rompe e um deles rola como uma grande bola de gude verde, escapando da cozinha para a sala. Acaba quicando num canto e vai se acomodar como meteorito em rastro luminoso de bólide, bem junto do Leviatã. Intrigado, abro o livro bem no capítulo X e leio na metade da página 54 "O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação pelo Estado se exprime através de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos, ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor". Fecho abruptamente o livro e me vem a mente - que obsessão! - o homem-sanduíche na catraia resfolegando nos seus estertores de moribundo. Lembro das eleições departamentais. Precisa-se de um Diretor. Sinto uma inconfessável vontade abjeta de rir. Afasto estas idéias e preparo uma caipirinha.
6. Mas é a Susan Buck-Morss que nos traz em sua leitura benjaminiana das Passagens, as conseqüências do aforismo: "O homem-sanduíche é a última encarnação do flâneur". A vagabundagem nos leva ao papel mais ordinário e desqualificado e, mesmo, a pretensa liberdade de se tornar um mercador de ilusões decadentes converte seus prepostos em meros vendedores de enciclopédia. Diz o Miroir du Monde em 1936 : “Você os vê passando por nossas ruas, esquálidos e maltrapilhos, com suas longas capas cinza, sob seus gorros com abas vistosas. Sejamos francos: nem de longe sou favorável a este tipo de trabalho. Por sua própria natureza, nem a dignidade da publicidade e do homem que a porta são valorizadas por meio deste cortejo lastimável”. Nos diz ela ainda que "O homem-anúncio foi uma figura menosprezada, embora familiar em Paris durante década de 1930, uma daquelas personagens que são reconhecidas como parte da maioria dos habitantes da cidade. Homem-cartaz, eles eram outdoors humanos que anunciavam e publicizavam produtos e eventos da cultura de consumo burguês. E, a despeito dos uniformes que lhes eram fornecidos para que tivessem uma aparência mais respeitável, estavam implacavelmente associados à pobreza". Como se vê, nos dias de hoje são compradores de ouro e vendedores de "ouro de tolo", no tráfico da zona de comércio das grandes capitais brasileiras.
7. Nos relata mais ainda Buck-Morss: "Trabalhadores eventuais de meio-período e não sindicalizados, os homens-sanduíche eram recrutados em meio aos mendigos (clochards) – dos quais doze mil estavam registrados em Paris, em meados da mesma década de 1930, como habitantes sem moradia. Dormiam onde podiam, geralmente debaixo das pontes do Sena onde encontravam abrigo das arcadas decadentes. Marginais, proletários desclassificados estas eram a " massa da população esfarrapada, maltrapilha e faminta que a sociedade tinha que desprezar". Nos permitam dizer ainda senhoritas, que algumas dos primeiros "homens-placa" em Paris eram mulheres. “Em 1884, um escritor fez uma reportagem para o London Times: ontem encontrei uma procissão de garotas vestindo cartazes publicitários. E no ano seguinte apareceu no Pall Mall Gazette: Nós temos, e não faz muito tempo, visto mulheres empregadas como ‘sanduíches". Se a relação entre o passado e futuro é um enigma ou charada com o qual despertamos e no qual o conhecimento do passado não é capaz de historicizá-la, mas de cristalizá-la como um pão-de-açúcar em balcão de padaria, os planos da realidade, memória e alucinação transformam o vestido de noiva de Nelson em filó de mosquiteiro na minha cabeça. Desperto agora garoto, com menos de 8 anos em plena Cidade Baixa.
8. Uma vizinha que vem de carona pergunta-me na sinaleira do cruzamento Garibaldi-Vasco da Gama-Lucaia. "Você viu a quantidade de meninas agora distribuindo planfetos imobiliários em Salvador?", "Pois é, deixou de ser coisa de gente pobre, agora tem também universitários fazendo isso...dá um dinheirinho, né?". Abro o vidro e chegam distribuindo vários lançamentos de apartamentos de luxo por toda Região Metropolitana de Salvador, mas também aparece logo um vendedor de rosas e um malabarista projetando seus pinos às alturas, um rapaz humilde que faz um artesanato com fibra de coco verde, um guri com uma garrafa PET querendo lavar o pára-brisa e ... o sinal fica verde novamente. Escapo e sigo adiante. Só paro e estaciono na CEASA do Rio Vermelho. Na barraca de hortifrutis "Bahia" pergunto a seu Ademar pelas novidades. Sempre sorrindo ele me diz que um colega, meio alourado-careca, alto e forte esteve mais cedo e teria perguntado por mim. (Quem teria sido? ), indago-me então. O Carlos Freitas, certamente. Finalmente recordo que devo voltar ao homem-sanduíche na catraia.
9. No retorno para casa, ao descarregar as compras, um saco pleno de limões se rompe e um deles rola como uma grande bola de gude verde, escapando da cozinha para a sala. Acaba quicando num canto e vai se acomodar como meteorito em rastro luminoso de bólide, bem junto do Leviatã. Intrigado, abro o livro bem no capítulo X e leio na metade da página 54 "O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação pelo Estado se exprime através de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos, ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor". Fecho abruptamente o livro e me vem a mente - que obsessão! - o homem-sanduíche na catraia resfolegando nos seus estertores de moribundo. Lembro das eleições departamentais. Precisa-se de um Diretor. Sinto uma inconfessável vontade abjeta de rir. Afasto estas idéias e preparo uma caipirinha.